Aqui é um espaço para eu viver minha Sombra (na acepção de Jung) de uma forma criativa.
E isso será feito por meio da escrita de contos policiais e de suspense.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Abdul - o Coveiro!

Abdul, o coveiro, era um homem egoísta e solitário.

Egoísta porque a Morte lhe dera duas opções para tê-lo como servo e reduzir ao máximo seu derradeiro encontro com ela: pouparia ao máximo a sua própria vida OU a de seus pais (Abdul era filho único). Ele optou pela primeira alternativa.

Solitário porque Abdul não queria se envolver emocionalmente com ninguém, ainda mais com uma mulher. Imagine se a Morte poupasse sua amada até o casamento. E na noite de nupcias, quando estivessem fazendo amor, se percebesse amando o corpo morto de sua esposa?

Pelo mesmo motivo, fugia da convivência social. Evitava estabelecer laços de amizade, até mesmo com seus colegas de trabalho: os coveiros do cemitério da Paz.

Abdul se sentia desconfortável também com os clientes que vinham ao seu local de trabalho para velar e ver o enterro de gente querida. Quando eles tentavam dialogar com Abdul, Abdul era objetivo, frio e seco, tal como a Morte. Suas olheiras, fundas como duas covas, eram simpáticas - bem diferente da Morte. E espontaneamente convidavam as pessoas a se aproximarem de Abdul. Mas ele logo cerrava os olhos e virava o rosto para não deixar as pessoas se aproximarem muito. Elas poderiam ver suas próprias covas nos olhos que refletiam a Morte.

Abdul vira muita dor e lágrimas em seu trabalho diário como coveiro nestes trinta e cinco anos de carreira. E seu início não foi nada fácil. Nada fácil... Ele não conseguia dormir direito. Ao fechar os olhos, apenas ouvia choros, soluços, rezas e ladainhas. E, mesmo sendo um homem sem fé, rezava para aquela experiência da morte não ocorrer tão cedo. Desesperava-o ver seus pais receberem a fatídica visita.

Percebeu, então, a importância de estar preparado para a chegada da Morte. Porém, passava dia, terminava mês, e Abdul continuava apavorado de ansiedade de se deparar com a dita cuja. Chegava até a imaginar qual daqueles coveiros com quem trabalhava enterraria seus pais. Quando um deles conversava com Abdul, Abdul não os ouvia. Apenas via a cena desse companheiro jogando terra sobre o caixão de sua família.

Por isso, Abdul não conseguia nem mesmo participar silenciosamente de nenhuma roda de conversas entre seus colegas. Uma simples discussão entre coveiros cruzeirenses e coveiros atleticanos gerava na mente de Abdul uma discussão sobre quem seria o responsável por descer o caixão de seus pais na cova profunda do cemitério.

À medida que Abdul se isolava de seus companheiros, se aproximava ainda mais de seus pais. Abdul não suportava a ideia de perde-los. Agarrava-se como um carrapato a eles quando não estava trabalhando. Qualquer espaço entre o abraço que os unia era sentido por Abdul como um puxão da Morte levando um deles para longe de si.

Isso fazia com que Abdul abraçasse ainda mais fortemente seus pais, tal como um cão tarado gruda em nossa perna considerando-a a salvação de todos os seus problemas. Seus pais, carentes e humildes, deixavam Abdul se enroscar neles. Fingiam indiferença. Todavia, no fundo, se sentiam especiais, amados como nunca foram em suas miseráveis vidas, tal como a perna deve se sentir em relação ao cão que lhe gruda virilmente.

Assim, Abdul tornava-se insano com a ideia de seus amados morrerem. Chegara ao ponto de pegar o banquinho da cozinha toda santa noite e o colocar na porta de entrada do quarto dos pais. A fraca luzinha do corredor iluminava aquela criatura perturbada velando o sono do casal. Abdul sentia-se como um guardião. O guardião da vida. Sua ordem era impedir a aproximação da Morte.

Foi nesta época que as olheiras de Abdul tornaram-se nítidas manchas escuras. Era cada vez mais difícil enxergar os olhos de Abdul. Pareciam cada dia um centímetro mais fundo. Porque Abdul trabalhava o turno da manhã e da tarde para cumprir com o protocolo da morte: enterrar corpos sem vida. À noite ele se rebelava contra aquela que de certa forma pagava seus salários. Se a Morte não mais trabalhasse, ele estaria desempregado. Vivia, portanto, uma relação de amor e ódio com a sua chefe.

Até que em determinado dia aconteceu algo estranho (para não dizer macabro). Ele era o último coveiro a
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sábado, 30 de março de 2013

O cárcere

Você já foi enganado por alguém? Já se sentiu traído? Então, você provavelmente sabe um pouco do que eu tenho vivido... Porque esse nível de engano e de traição dói nas vísceras. Dilacera a alma, esfacela o coração...

Eu nunca imaginaria que poderia ser vítima de um golpe tão baixo. E vindo justo dele... Dele!?! Com quem vivi praticamente toda minha vida!!! Tínhamos um vínculo tão estreito, mas tão estreito... Éramos como unha e carne. Onde um ia, lá estava o outro, acompanhando.

Era um relacionamento tão intenso, tão profundo... Sabe quando você está ao lado de alguém que ama? E não precisa dizer nada? O silêncio entre vocês não incomoda, não angustia? Pois é... Tínhamos esse nível de relação. E, aqui entre nós, não é fácil construir um vínculo desses, não é mesmo? Você sabe disso.

Com quantas pessoas você pode ficar em silêncio sem se sentir oprimido pela necessidade de verbalizar algo, qualquer coisa, apenas para não sentir o desconforto da presença do outro? Pois é... Desde pequeno nós desfrutávamos cada momento.

Lembro, por exemplo, de quando passávamos as férias de janeiro na casa do tio dele. Um condomínio fechado lá em Angra dos Reis, onde os funcionários da usina moravam. Numa determinada tarde, estávamos na varanda da casa, a qual era de frente para o mar. Começou a cair aquele toró! Uma chuva magnífica de tão assombrosa! Tudo em exagero: raios, trovões e água, muita água. O cenário que se formou do encontro entre o oceano e a tempestade era magistral, de um cinza quase negro.
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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Minha timidez e a negra toda vestida de branco.

Quando eu era pequeno, sempre que uma visita chegava, costumava me esconder no banheiro de casa. Mesmo sendo um tio, eu logo corria pra lá. Ficava torcendo para ninguém querer usá-lo, pois era o único que tinha em nossa residência.

Lá dentro, eu encostava o ouvido na porta para tentar escutar o que se conversava na sala. O máximo que conseguia distinguir eram sons parecidos com cochichos. E isso me angustiava. Será que algum deles estaria perguntando aos meus pais:

- Onde é o banheiro?

Eu era capaz de ouvir claramente os passos das pessoas, especialmente ao se aproximarem de onde eu estava. Eu cerrava os olhos com força e meus lábios tremiam freneticamente, como ao rezar uma ladainha. Torcia para não virem até mim...

Suspirava de alívio quando percebia os passos mudarem de direção e tomar o rumo de outro cômodo, tal como da cozinha ou do quarto de meus irmãos. Era uma sensação libertadora. Eu abria os olhos novamente, retomava a respiração e meus lábios voltavam ao normal. Normal? Não, quase. A secura de minha boca deixava-os ásperos.

Não sei o quê meus pais achavam dessa minha atitude. Talvez me considerassem tímido, excessivamente tímido. Lembro-me, inclusive, de entrar apressadamente ao banheiro e logo trancar a porta assim que ouvia o interfone tocar. Muitas vezes, era um pedinte, ou o carteiro solicitando que algum morador fosse até a portaria assinar um documento ou simplesmente alguém que tocara no apartamento errado. Eu não queria nem saber. Não pretendia passar pelo incômodo de me ver cara a cara com um visitante. Ali dentro, não ouvindo os sons similares ao cochicho, destrancava a porta e abria uma fresta - o suficiente para um olho e para receber a chegada de sons mais nítidos vindos da sala. Diante da ausência de sinais de que uma visita estaria ali, eu abria o restante da porta e podia retomar minha vida. Isto é, voltar para o meu quarto.

Não por acaso eu era considerado antissocial no colégio. Porque ficava enfurnado no meu canto. Na verdade, eu adorava os cantos. Na sala de aula, minha carteira era lá no fundão, na esquina oposta à da porta. Eu fazia questão de colar meu assento no cantinho, não deixando um mínimo espaço entre minha cadeira e o assoalho. Algum visitante poderia colocar o pé ali e, sorrateiramente, conquistar espaço ao arrastar minha carteira. Eu não dava brechas.
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sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Devorador

São vinte e uma horas. Faltam dez minutos para eu agir.

Eu só não sei se conseguirei saciar meu desejo, minha fome. Afinal, a cada segundo, mais eu quero me alimentar. Minha ânsia por alimento ganha uma proporção mais dramática. 

A cada minuto chega um novo alguém, uma nova tentação. Este é um horário muito nobre, pois desperta em mim uma devoção e uma gratidão tremendas. São vários "pratos de comida." E isso me faz salivar ainda mais. Eu pareço o cão de Pavlov. A única diferença é que ele estava preso. Eu sou livre. Ou melhor, assim me tornarei quando me alimentar. Por enquanto, sou apenas um moribundo. Pareço um zumbi. Um morto-vivo. Sem meu alimento, sou um nada.

Todavia, pelo jeito meu banquete será daqueles. Porque o número de pessoas aumenta a cada volta do ponteiro menor do relógio. E tem tudo para satisfazer minha fome. Será? Será que conseguirei escolher a melhor fonte de alimentação e me saciar com uma de tantas opções ao meu dispor? É tudo que eu quero. Preciso desse alimento. Eles têm muito a me oferecer.
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quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Maria Amélia: A frentista

Maria Amélia, hoje com a idade de quarenta anos, trabalhava há vinte no posto de gasolina da cidade de Matozinhos, interior de Minas Gerais. Aquele foi o seu segundo emprego.

Muitos ali tentaram descobrir onde a mulher trabalhara antes. Mas nem na entrevista para o cargo de frentista ela revelou. E não foi por falta de insistência de Farias, o dono do posto (um português típico, com um baita bigode se espalhando para os lados).

- Eu preciso de uma referência, Maria Amélia.

- Não. - Respondeu a candidata.

- Uma mulher aqui, num emprego como este e num posto de beira de estrada? Preciso da informação de onde trabalhou até mesmo para saber um pouco mais do seu passado. É importante na avaliação de seu curriculum.

- O passadu é passadu, meu senhor. As pessoas muda.

Farias ficou se perguntando se Maria Amélia trabalhara em algum prostíbulo para dizer aquilo. Será que ela era patrocinada por alguma cafetina numa das famosas zonas de Matozinhos? E por isso ela não queria ser julgada por ter trabalhado anteriormente com prostituição? Afinal, "o passado já passou" e "as pessoas mudam."

- Ora pois, sei que as pessoas mudam - insistiu Farias, dando ênfase à última palavra numa tentativa de corrigir sutilmente os erros da pronúncia de Maria Amélia. - Porém, como me sentirei seguro aqui sem saber onde trabalhou?
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segunda-feira, 20 de junho de 2011

Pesadelo

Ela começava a suar frio... Remexia-se na cama, tendo súbitos gemidos, com sussurros indecifráveis. Movimentos espasmódicos ocorriam com as suas mãos – parecia um maestro enlouquecido por estar fora de sintonia com a orquestra. Suas pernas se esticavam debaixo do restante da coberta que ainda a cobria, impulsionando seus pés a pequeninos chutes, como a empurrar um inimigo desconhecido, profundamente indesejado.

Sua cabeça ora virava bruscamente para a esquerda, ora para a direita. Seus olhos fechados mantinham-se cerrados com força, como se ela não quisesse enxergar de frente aquilo que a incomodava. Sua respiração tornava-se cada vez mais ofegante, dando sinais de que o desfecho estava prestes a ocorrer.

Foi então que ela soltou um berro no exato momento em que todo seu corpo foi impulsionado para frente, trêmulo, sentando-se na cama; a coberta caiu de vez no chão, deixando despida aquela pobre alma agonizante.

Ela olhou para o lado direito da cama, ainda com a boca aberta, toda ressecada. Seu marido ainda não chegara. A Gestante ficou ali sentada por alguns segundos. Parecia anestesiada com toda aquela carga emocional impactante e assustadora.

Pegou a coberta do chão e se cobriu. Buscou dormir novamente, recolhida em posição fetal. Mas o que vivera naquela tarde parecia querer retornar. A Gestante tivera de suportar uma dor fortíssima quando agonizara no chão da cozinha horas. E o pior: a dor era acompanhada de flashs com cenas muito estranhas, esquisitas.

Como sua dor era tamanha, ela não conseguiu se fixar nas imagens que vinham à sua mente. Foi incapaz de guardar todas. Mas uma se manteve em sua memória: a de uma árvore antiga, daquelas com raízes visíveis que se esparramam por um longo espaço ao redor do enorme tronco.
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sábado, 9 de abril de 2011

Mulheres: nova fonte de prazer

O psicólogo junguiano entrou silenciosamente na sala de aula. Não deu boa noite a nenhuma aluna. Aquela classe do 3o.Período de Psicologia não tinha nenhum aluno homem, apenas mulheres.

Colocou seus materiais sobre a mesa e procurou algo em seu bolso. Encontrou seu pincel atômico. Usando-o, dividiu o quadro branco em três partes ao traçar minuciosamente - de cima para baixo - cada uma das duas linhas verticais.

Na primeira parte, escreveu: "A energia consumida pela culpa seria muito melhor empregada no ato corajoso de olhar para os dois conjuntos de verdade que se chocaram na nossa personalidade."

Na segunda parte, ainda sem olhar para a turma, escreveu: "Uma parte do ouro puro de nossa personalidade é relegada à sombra porque não encontra lugar nesse grande processo de nivelamento que é a cultura."

E, na terceira parte, já ouvindo os murmúrios de algumas alunas que diziam achar o professor estranho – por ele não ter dado boa noite (como sempre fazia) ao entrar na sala –, escreveu: "Assim, fica claro que precisamos fazer uma sombra, senão não haveria cultura; em seguida devemos restaurar a integridade da personalidade que foi perdida nos ideais culturais, caso contrário viveremos num estado de divisão que se torna cada vez mais doloroso no processo de nossa evolução."

Finalmente, ele se virou para as estudantes. Passou seus olhos por cada uma, num silêncio eloqüente, e perguntou:
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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Crise da meia idade: a libertação do mal

Era noite. Eu estava reunido com meus familiares. Minha mãe comemorava o seu aniversário. Todos se encontravam no terraço da casa de meus pais. Minha esposa brincava com nossos dois filhos, os quais formavam uma rodinha com meus sete sobrinhos; todos homens. Parece que os nossos genes - meus e de meus três irmãos - não abriam espaço para o lado yin da vida. Só yang. E ali, diante daquela prole, observava minha mulher com as crianças. Ela era o elemento yin no círculo yang daquele meninada.

Quando percebi, eu me vi isolado num canto do terraço. Porque observei outra rodinha. Esta tinha meus irmãos e suas respectivas esposas. Meus pais se juntaram a eles, trazendo garrafas de espumante. Encheram o copo de cada um para brindarem a venda de mais um imóvel de luxo. Sim, herdamos a imobiliária de meu pai. Nós quatro éramos os únicos corretores. Uma empresa realmente familiar.

Foi então que me dei conta do retorno de uma sufocante angústia, a qual vinha me rondando nos útlimos tempos. Um de seus reflexos girava em torno do fato de não conseguir me sensibilizar mais por aquele clima de festividade e união familiar. Na verdade, tinha asco por aquela reuniãozinha idiota. Sorrisinhos falsos e felicitações hipócritas. Por trás dessa fachada de glamourosa felicidade, havia uma competição voraz para o prêmio de melhor corretor do ano. Naturalmente, eu - o caçula - não participava dessa guerra velada entre meus irmãos. Eu era peça excluída desse tabuleiro imobiliário. Porque todos notaram minha vertiginosa queda na venda dos imóveis nos últimos cinco anos. Portanto, eles consideravam que continuaria não havendo ameaça competitiva de minha parte. 
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domingo, 30 de janeiro de 2011

Obediência

Há quinze dias, um pensamento tomou conta de minha mente. Qualquer atividade passou a ser acompanhda desse conteúdo mental. Quer quando urinava, ao preparar meu leite antes de dormir, no momento em que eu acordava, enfim, a cada instante, meu cérebro martelava um único pensamento.

Comprovei a força do pensar exaustivamente em algo. Percebi o quanto mexe com nossas emoções. Porque quando essa ideia se tornou poderosamente frequente, eu sentia também o ímpeto de realiza-la. Meu coração palpitava mais forte, minha boca secava e minhas mãos tremiam. Parecia possuído desse pensamento. Não conseguia mais ler Dostoiévski, meu ator predileto. Eu me tornara uma espécie de personagem, daqueles bem atormentados, de seus livros.

Cheguei ao cúmulo de queimar as obras literárias que mais amava. Os escritores russos já não faziam mais parte da decoração de minha sala. Havia, agora, um espaço vazio na estante. Gostaria que aquele vácuo se reproduzisse em minha mente. Afinal, considerava-me vítima da influência de Tolstói, Pushkin, Tchekhov. Tentei, insanamente, bater com a cabeça na pilha desses livros antes de queimá-los. Buscava extrair na marra esse pensamento nefasto de mim.

Não adiantou. Foi em vão. Continuava pensando obsessivamente na mesma ideia. E persistia os efeitos físicos, emocionais e psíquicos desses pensamentos. Coração disparado, secura na boca e tremedeira das mãos. Cheguei a pensar em síndrome do pânico. Será que era uma crise de ansiedade? Enfim, precisava tomar uma decisão mais drástica para interromper esse fluxo possessivo que alucinava minha mente.
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sábado, 1 de janeiro de 2011

A maldição cigana

- Onde... está... o... Igor? - perguntou o moribundo, com o resto de voz que ainda conseguia emitir.

Os três ciganos olharam ao redor do quarto daquela tenda. Não encontraram Igor. E ficaram preocupados. A mãe de Igor se aproximou do velho, inclinou a cabeça e lhe fez um carinho.

- Em breve ele chegará, papai...

Com esforço sobre-humano, o cigano doente disse:

- Eu... estou... prestes... a... morrer. É... chegado... o momento de... Igor participar... do ritual de... minha... passagem. - Respirou fundo, com dificuldade. 

A tia e o tio de Igor também se aproximaram um pouco mais. Eles não souberam o que responder ao avô de Igor. Pensaram em procurar o adolescente. Porém, nenhum deles poderia sair do quarto naquele derradeiro momento com o ancião cigano. A qualquer instante, a morte se faria presente.

A preocupação foi maior quando ouviram a pergunta do cigano-chefe:

- Onde... está... o... punhal?
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quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O Compromisso

- Ei, cuidado, pô! – vociferou o executivo de terno e gravata. Há poucos segundos atrás, quando movia a xícara de cappuccino até seus lábios após pedir a conta para Mastrangelo, este esbarrara na mesa em que se encontrava e provocara o acidente. O imenso e negro bigode em forma de V invertido do homem de terno e gravata tornara-se marrom por causa do café esparramado entre seus pêlos. Sua face ficou vermelha de raiva. Seus olhos faiscavam a ira em direção ao atendente. 

- Desculpe-me, senhor. - Mastrangelo abaixou a cabeça, submisso. Logo em seguida, em vez de olhar diretamente para o cliente e tratar de limpar o estrago provocado pelo café derramado que respingou na roupa do homem, Mastrangelo avistou o relógio acima do balcão. Faltavam cinco minutos para as vinte e duas horas. Mesmo estando numa cafeteria-livraria de uma cidade interiorana dos Estados Unidos, nem se fosse num carro de fórmula 1 chegaria a tempo para o compromisso com Matilda, sua namorada, na estação de trem. 

Mastrangelo fora encarregado de fechar a cafeteria-livraria naquela noite. Ele, portanto, trabalhava sozinho naquele horário. Quando o executivo, o qual era o último cliente, pagasse a conta e saísse, Mastrangelo ainda teria de colocar os livros espalhados pelas mesas em ordem nas prateleiras. O turno tinha sido bastante movimentado. Alguns estudantes juntaram várias mesas e fizeram uma pesquisa de horas no estabelecimento. E deixaram os exemplares para Mastrangelo organizá-los nas estantes.
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domingo, 5 de dezembro de 2010

O inquilino

O interfone tocou. Fui pego de surpresa. Estava tão concentrado em meus pensamentos... tão entretido na minuciosa tarefa a qual me dedicava...

- Quem é? - perguntei.

- Sedex.

Meu prédio não tem elevador. Então, desci as escadas. "Será que minha encomenda chegara?" Como moro no segundo andar, não demorei muito para alcançar a portaria.

Ao me ver, o carteiro começou a escrever. Quando cheguei perto, ali no portão do prédio, vi que ele preenchia um espaço com detalhes da entrega. Vários endereços se destacavam no local onde ele escrevia. Ali estava o nome da minha rua e os números do meu prédio e do meu apartamento.

Na verdade, não posso dizer que seja meu. É alugado. Há quase dois anos estou aqui. Em breve, o contrato de aluguel vencerá. Um dia terei o meu. Mas creio que não será este. Não... depois do que aconteceu, não será não...

- Identidade, por favor? - foi a pergunta que ouvi do moço todo uniformizado com aquela roupa de cor amarelo e azul. E lhe informei os dados de meu RG.
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domingo, 28 de novembro de 2010

Herança Parental

Meus pais sofreram muito comigo. Eu não sei o que eles pensavam de mim naquela época. Gostaria de ter perguntado ao meu pai o que ele e minha mãe achavam quando eu fazia aquelas cenas aos domingos. Coitados... Todo dia de missa era aquela birra, aquele caos. Eu reagia tão agressivamente... Parecia um animal enjaulado, babando de ódio por me aprisionarem durante uma hora num local onde eu não queria estar.

Sempre detestei ir à missa. Aquele cheiro de incenso me sufocava. Aquela fala morosa do padre - na maioria das vezes, um estrangeiro com sotaque ridículo - ecoava de modo chiado pelas precárias caixas de som da igreja. Meus ouvidos zumbiam. E aquele papel tingido de amarelo? Era um fingimento, como se fosse um pergaminho antigo. Sem contar que grudava nos meus dedos, por estes estarem molhados de lágrimas... lágrimas de raiva... gotas de revolta que minha alma lançava para o exterior como reflexo de uma vontade reprimida.

Não sei se é lenda... Talvez seja. Alguns tios me contaram um mesmo segredo, em épocas e momentos distintos. Ora um, ora outro vinham até mim. Nunca na frente de meus pais. Quando um de meus tios chegava em uma festa da família, como o Natal, sussurrava para mim:

- "Você vomitou na pia batismal quando o padre derramou água benta em sua testa." - Confessavam esse meu comportamento por meio de um cochicho, ao agacharem próximo a mim. E sempre olhando para os lados, preocupados. Meu pai ou minha mãe poderiam estar à espreita.
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segunda-feira, 21 de junho de 2010

RON

As pessoas têm medo de mim. Elas me evitam. Na verdade, sentem nojo da minha presença. Basta eu me aproximar para obter o afastamento imediato delas. E é aquele tipo de distanciamento mesquinho. Pois se preocupam em, indiretamente, caminhar no sentido contrário ao meu. Fingem sair de perto por outro motivo. Mas sei que é por minha causa.

Nem preciso chegar bem próximo para obter essa aversão. Basta uma certa distância, ou mesmo a visão da minha chegada. Isso é suficiente para cada um tomar um rumo contrário ao ponto onde estou e poderei estar. O corpo das pessoas parece movido por um motor, acionado quando seu radar de hipocrisia detecta a minha aproximação. Nem olham nos meus olhos. Simplesmente vão. Tratam de ir para bem longe de mim, tamanho o pânico de serem contaminadas. Pareço o agente causador de uma moléstia fatal. Uma espécie de câncer sob forma humana.

Você pode pensar que sou horroroso. Não, não sou. Também não sou belo, confesso. Mas tenho traços bem delineados e equilibrados. Tudo bem, um metro e sessenta de altura não se enquadram nos padrões sociais de virilidade. Porém, do jeito que as pessoas me evitam, minha aparência deveria ser assustadora. Meu rosto precisaria estar carcomido pela lepra. Minhas orelhas teriam de ser deformadas, tais como as dos lutadores de jiu-jitsu. Enfim, eu teria de ser um monstro. Contudo, não sou.
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Na mente do psicopata

O psicopata encontrava-se sentado na sala de interrogatório. Aguardava a chegada do especialista em análise do comportamento. Mais uma vez o interrogariam. Estava ali há cerca de quatro horas. Vários policiais tentaram extrair as informações necessárias do criminoso. Não conseguiram obter uma sílaba sequer. E, o mais incômodo, saíram desconcertados. Foram incapazes de suportar o olhar frio e penetrante daquele enigmático homem.

Ele era observado por um grupo de homens e mulheres fardados que ocupava a sala ao lado. Todos o avaliavam através do falso espelho que os separavam. Parecia um artista, daqueles que hipnotizam a platéia com sua simples presença carismática. E arrastam a multidão através de seu brilho. Porém, o que destacava aquele homem era um brilho sinistro.

A atmosfera gélida do recinto em que o psicopata permanecia talvez representasse fielmente o seu habitat. Sua psique provavelmente sentia-se confortável naquele ambiente. E ele, impassível, desejava olhar nos olhos do próximo imbecil que chegaria. Internamente soltaria mais uma macabra gargalhada ao ver a reação de assombro do merdinha que viria.

Vários olhares – até então focados no psicopata – se dirigiram para a entrada da sala de interrogatório. Tal como a platéia de uma partida de tênis acompanha a bola de um lado para outro, os policiais – antes hipnotizados pela aura do assassino – agora observavam o especialista abrir a porta. A cada segundo, variavam seu olhar. Ora para o criminoso, ora para o psicólogo. Já os dois, silenciosos e imóveis, se encaravam. Enquanto isso, a platéia procurava vestígios na expressão facial de cada um. Ansiavam por identificar medo, seja de qualquer das partes. Mas se frustraram.
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Realidade

Ele acabara de assistir o último episódio da quarta temporada de Criminal Minds. Gostou de ver o Hotch ser surpreendido pelo psicopata logo ao entrar no quarto do hotel. Preferiria que todos da equipe, não apenas o líder dela, fossem encurralados. Ah... como adoraria...

Ficou alguns minutos olhando a TV de LCD já desligada. Mentalmente ele traçava seu diabólico plano. Imaginou como sequestraria cada membro deste seleto grupo do FBI. Usaria as mesmas estratégias empregadas por Hotch, Morgan, Garcia, Reed, Rossi, JJ e Prentis para traçar o perfil psicológico de cada serial killer que caçam. Construiria meticulosamente o perfil de cada um. Descobriria claramente as vulnerabilidades de cada qual e as usaria como iscas para atraí-los. E essas sete armadilhas, todas elaboradas de forma peculiar e genial, seriam a fonte de seu sucesso.

Ele, então, seria reconhecido como aquele que liquidara com a nata da Unidade de Análise do Comportamento. Teria uma glória infinitamente maior do que qualquer serial killer. O sonho de deixar uma marca na vida seria, enfim, realizado.

O despertador de seu celular entrou em ação. A nona sinfonia de Beethoven, seletivamente programada, o trouxe de volta ao presente. A cada dia, uma música clássica diferente o lembrava de que era hora de trabalhar. Passou estoicamente por esse processo durante os últimos dez anos.
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